Em minhas reminiscências de
infância, a imagem da bruxa era sempre apavorante.
Sua
caracterização física auxiliava sobremaneira na construção do medo diante
dessa figura feminina que, muitas vezes, era usada até por pais como elemento
ameaçador a fim de disciplinar as crianças.
Cresci ouvindo a descrição da
bruxa da história de João e Maria, senhora de feições grotescas afeita à
antropofagia. Esse ser aterrorizante que comia criancinhas merecia mesmo tão
duro castigo aplicado por João e Maria.
Isso sem falar da madrasta da Branca de Neve que personifica essa
maldade de bruxa a fim de castigar a enteada por sua beleza. Associado a
essas imagens, surge o adjetivo bruxa, como caracterizador de mulher feia e
megera.
Essa visão da bruxa passou por
transformações e, atualmente, percebe-se a criação de bruxas que agem
eventualmente com bondade ou, por vezes, portam-se como fadas.
Foi diante dessas inquietações que
surgiu a temática deste ensaio, a fim de investigar como se situa a imagem da
bruxa nos dias de hoje. Para tanto, partirei inicialmente de uma abordagem
psicológica do que representa o medo de bruxa. Desejo e medo são elementos fundamentais
para a evolução dos seres humanos, uma vez que temos medo do que desejamos e
desejamos o que nos faz medo.
Na evolução humana, esses temores
devem ser enfrentados, sob a pena de surgirem patologias. O medo de bruxa
pode ser relacionado a dois degraus da escada do desejo e do medo proposta
pelo psicólogo Jean-Yves Leloup: medo da separação e medo de ser rejeitado
pela sociedade.
As crianças tem medo de se separar
da mãe (ou pessoa que represente este papel) e perder a garantia de segurança
e proteção. Essa figura materna é vista com ternura e cercada de atributos
positivos. Entretanto algumas vezes, a criança é contrariada em suas vontades
exatamente por essa pessoa.
Instaura-se, assim, o dilema
infantil: como sentir raiva de alguém tão amado sem ferir-lhe os sentimentos
e perdê-la? Manifesta-se a necessidade de dividir a figura materna em duas
partes que corresponderiam à fada, vertente positiva, e a bruxa, lado
negativo. Com essa cisão, a bruxa concentra em si a maldade e, por isso, pode
ser odiada e castigada numa atitude de enfrentamento por parte da criança.
A bruxa, para vivificar esses
desejos de vingança infantil, tem de corresponder a um ser detestável. Daí
nasce a imagem de uma ardilosa senhora, de certa idade, que se veste em tons
escuros e sombrios, sendo geralmente descrita como fisicamente fora do padrão
de beleza social.
A maldade precisa ser sua
característica mais marcante a fim de justificar tamanho ódio a ela
direcionado pelo personagem principal das histórias. Desta maneira, a
dissociação de bem (fada-mãe-protetora) e mal (bruxa-mãe/madrasta-malvada)
facilita a superação do medo da separação materna.
O desejo de corresponder a uma
imagem de "homem de bem" ou "mulher de bem" gera a
preocupação com o chamado imago social. Desse desejo de corresponder a uma
imagem social de “bem”, surge um medo de ser rejeitado pelo grupo e de ser
diferente.
A sombra, na conceituação
proposta por Jung, contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis do
homem. Para ultrapassar a limitação, o ego entra em conflito com esta sombra
a fim de enfrentar a não aceitação de características pessoais socialmente
mal vistas.
A necessidade de enfrentar a
própria sombra é tematizada pela literatura infantil de diversas maneiras,
dentre elas através das bruxas. Elas simbolizam a força perversa do poder.
Por muito tempo, foram personificadas através de um estereótipo grotesco, a
fim de impactar e causar horror.
O herói precisa reconhecer a existência da
sombra e a batalha travada para vencer o poder da bruxa representa o triunfo
do ego sobre essas tendências negativistas.
Segundo a psicanálise, o
maniqueísmo que divide as personagens facilita a compreensão de valores
básicos da conduta humana e do difícil convívio social.
Se
essa dicotomia for transmitida através de uma linguagem simbólica durante a
infância, não prejudica a formação de sua consciência ética.
A criança identifica-se com os
heróis do mundo maravilhoso, sendo assim levada a resolver,
inconscientemente, sua situação pessoal. Dessa forma, consegue enfrentar e
superar o medo presente à sua volta e pode, gradativamente, alcançar o
equilíbrio na fase adulta.
A literatura infantil
contemporânea convive com um sério problema: de que maneira apresentar ao
público infantil esse lado pavoroso da “sombra do homem” tão presente na vida
moderna?
Será que essa polarização de bem e
mal é o melhor caminho ou seria mais adequado mostrar a relatividade das
coisas e as ambiguidades das pessoas?
A ética maniqueísta que separa
nitidamente bem de mal, certo de errado, vem perdendo espaço. Em seu lugar,
está presente uma ética relativista em que o mal aparente revela-se em bem ou
resulta em algo certo. Essas transformações podem ser bem observadas diante
da mudança no emprego de outra categoria de personagem que é a transfiguração
de uma realidade humana.
A visão maniqueísta da bruxa
apresenta-a como uma personagem-tipo ou plana que é estereotipada. Essa
personagem corresponde a um procedimento padrão de maldade que nunca muda
suas ações ou reações, sendo sempre má.
Em consequência de uma nova visão de mundo, os escritores passaram a
privilegiar personagens que sejam condizentes com essa relativização de conceitos.
Essa dimensão ambígua do homem ganha forma através da
personagem-individualidade, típica da ficção contemporânea. Esse tipo de
personagem não pode ser rotulado como sendo bom ou mau, ele passa a “estar”
bom ou mau diante diferenciadas situações.
Apesar das críticas recebidas
pela ética relativista, ela mostra-se cada vez mais presente nas histórias infantis.
Aqui a bruxa torna-se um elemento bastante representativo para uma observação
da desconstrução da imagem de maldade da bruxa, inclusive com um trabalho de
identificação do leitor com ela.
Como exemplos de bruxas nessa concepção de personagem-individualidade,
observei algumas produções infantis brasileiras. Encontrei manuais para
entender melhor as bruxas com vestimenta, acessórios, formas de agir etc.
Bartolomeu Campos de Queirós
mostra as sutilezas do lado bruxa da vida em Onde tem bruxa tem fada. Eva
Furnari apresenta uma bruxa atrapalhada, bem próxima à realidade infantil,
bem como a personagem Bruxa Onilda em suas viagens.
Como
não poderia abordar várias obras, selecionei duas como representativas dessa
nova bruxa: a peça A Bruxinha que era boa, de Maria Clara Machado e Uxa - ora
fada ora bruxa de Sylvia Orthof. Logo, pelo título Maria Clara rompe com esse
paradigma de maldade relacionada às bruxas. Na verdade, a bruxa/feiticeira
era um elemento importante em diversas culturas, como por exemplo, a céltica.
Com a difusão da fé católica, ela
adquiriu essa carga pejorativa. Diante da figura próxima ao demônio, os fiéis
temiam as bruxas e, principalmente durante a Santa Inquisição, queimavam-nas
em praça pública.
Na peça, há seis bruxas, sendo
uma a chefe das demais que são aprendizes prestes a realizar seus exames
finais diante do temido Bruxo Belzebu, sua Ruindade Suprema. Subliminarmente,
questiona-se o poder da dominação do Grande Bruxo e o medo que as outras
sentem de contrariá-lo de alguma maneira. A Bruxinha Ângela, cujo nome sugere
referência a anjo, é diferente das outras em seu comportamento e até
fisicamente (típico Patinho Feio). Ela tem movimentos elegantes, risos ao
invés de estridentes gargalhadas, rostinho angelical e cabelos estranhamente
louros. Ela não apresenta o estereótipo da bruxa e não é de sua natureza
fazer maldades. Em certa parte da história, o Grande Bruxo convoca as
bruxinhas aprendizes para fazer maldades, pois só se veem bruxas
falsificadas, segundo ele.
O primeiro alvo é Pedrinho, jovem
lenhador, que acaba achando aquela Bruxinha diferente e até questiona se ela
não é uma fada disfarçada. Com o auxílio dele, Ângela consegue não ficar
presa numa torre que seria o castigo por não fazer as maldades típicas de uma
bruxa.
Já Sylvia Orthof traz o humor
para sua história ao contar as desventuras da baixinha e gordinha Uxa que,
sendo bruxa, resolve dar uma de fada algumas vezes. Para desempenhar esse
papel, ela tem de mudar o visual e coloca peruca loura e chapéu de fada. Como
para uma bruxa é difícil fazer caridade; ela, na tentativa de ser boa, acaba
criando diversas confusões.
Depois de seus equívocos como
fada, a varinha vira vassoura e ela diz que se cansou de ser tão boa... E
loura. Ela descobre que pratica mesmo o que chama de “maldade beleza pura” e
ajuda diversas pessoas. Num real afastamento da imagem de medo em relação à
bruxa, a autora apresenta Uxa através de um narrador que se diz amigo dela.
Para finalizar e atualizar esse referencial da bruxa, ela se apaixona
perdidamente por um moderno computador.
Encerro, portanto, este ensaio
com a certeza de que a imagem da bruxa, atualmente, não é mais apavorante e
que inspira medo. Pelo contrário, multiplicam-se os sítios na grande rede de
computadores que registram como fazer bruxarias e afirmam categoricamente as
boas intenções das bruxas.
A literatura infantil está
desempenhando este papel de mostrar a relativização dos conceitos de bem e
mal em toda a sua ambigüidade humana.
Ficam aqui como fecho duas
frases; uma do narrador da história de Uxa, complementada pelas palavras
finais de Iêda de Oliveira em Bruxa e Fada Menina Encantada:
“(...)
sei não, eu acho Uxa muito parecida com muita gente!”
“Quando se zanga, vira bruxa / Quando ama, vira fada.”.
Referências
Bibliográficas
BETTELHEIM,
Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 14. Ed. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
CHEVALIER,
Jean e GHEERBRANT, Alain. Dictionanaire des Symboles. Paris, Seghers et
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LELOUP,
Jean-Yves. Caminhos da realização dos medos do eu ao mergulho no Ser. 10ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
COELHO,
Nelly Novaes. Literatura Infantil - Teoria - Análise - Didática. 5ª ed. São
Paulo: Ática, 1991.
MACHADO,
Maria Clara. A Bruxinha que era boa. In: Teatro I. 12ª ed. Rio de Janeiro:
Agir, 1987.
ORTHOF,
Sylvia. Uxa - ora fada, ora bruxa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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Este blog objetiva registrar minha experiência profissional durante mais de 50 anos. Seus textos não são inéditos e nem somente de minha autoria. Ele se constitui de textos de educadores que concebem o processo educativo como interação de todos os sujeitos, que induzirão o leitor à reflexão, sugerindo idéias propondo uma re-visão nesse diálogo permanente, que é a Educação. Educar, não será preparar para a vida, será a própria vida.
terça-feira, 9 de julho de 2013
A DESCONSTRUÇÃO DO MEDO DE BRUXA NA LITERATURA INFANTIL CONTEMPORÂNEA
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